quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Crítica sobre novo show de Clécia:

Do palco partiu a mensagem que repercutiu na platéia e se transformou num coral afinado a repetir em uníssono o imorredouro aviso de Adalgisa mandando dizer que "a Bahia tá viva inda lá/tá viva inda lá...." O canto trazia ao teatro a sensação de que a entidade ali estava para ver e aplaudir o espetáculo feito inteiramente do que de mais puro e autêntico a cultura popular do recôncavo produziu, samba-de-roda, chula e samba. Abria-se ali uma pequena -- muito pequena -- brecha de esperança na monolítica cultura axezeira, capaz de qualquer coisa para fechar os espaços a quaisquer outras expressões musicais que não sejam os "pagodes" e "axés" ministrados diturnamente em doses cavalares capazes de alienar e perverter o público, tornando-o refém de manifestações voltadas para o lucro fácil, concentradas em mãos de uns poucos que regem a coisa com mão de ferro, invadindo as rádios e ocupando todos os espaços. Antes que esqueça. Joãozinho, o Cacique Jonhy, continua morrendo aos poucos, abandonado pelos que usaram e abusaram do seu talento e empatia com o público. Um dia a terrível doença degenerativa tomou de assalto o seu cerebelo e ele foi, simplesmente, descartado.
A noite prometia. Sem perder rumo nem ritmo emendou por uma breve -- e bela -- homenagem a Pequena Notável e a Dorival cantando, dançando e imitando os trejeitos, na imortal "O Que É Que a Bahiana Tem". Em seguida chegou a "rainha do frevo e do maracatu" trazendo consigo as crianças da Escola de Dança da Fundação Cultural, bem ensaiadas e coreografadas, enchendo o palco, e os olhos do público, com os ritmos em que Dora era mestra suprema. A platéia atenta, meio que magnetizada, ia no embalo formando o coro que um dia Alceu Valença qualificou como o mais afinado do Brasil. Este, aliás, é um espetáculo à parte. É impressionante como o público acompanha os artistas, cantando, encantando e dando ao espectador menos avisado a impressão de que tudo aquilo é ensaiado. É bonito de se ver!
....E ela estava solta. Primeiro veio de Oxum, toda de amarelo-ouro, evoluindo ao som da percussão que marcava o ritmo e hipnotizava o público, garantindo sua performance, com apoio na cozinha de cordas e sopro. Impressionante a integração dos artistas no palco. Davam a impressão de que nunca fizeram outra coisa na vida além de trabalharem juntos. Depois voltou de Oxalá, toda de branco, sem deixar cair a qualidade do trabalho. Simples impressão? Ou será que, de verdade, os dois orixás estavam ali, garantindo o clima de paz e alegria imprescindíveis numa apresentação ambiciosa e competente? Nesse terreno a Sexta não ousa entrar. Limita-se a registrar os instantes de pura magia, quando o espectador se transporta e se transmuda, viajando no encantamento da música, esquecido das vicissitudes e percalços do dia a dia. Ali não se pode racionalizar. Dane-se a razão. O negócio é um só: deixar vir a emoção, viajar no som e... sonhar de olhos bem abertos para não perder um só detalhe.
Incansável no seu afã de não se deixar vencer, Clécia Queiroz (cantora, atriz, dançarina, professora) vem estudando, pesquisando e catalogando os ritmos genuinamente nascidos na Bahia, movida pela vontade férrea de assegurar que não serão definitivamente soterrados e esquecidos. O "show" tinha o objetivo de apresentar ao público o seu novo CD de nome que até parece jogo de palavras: "Samba de Roque". Só que não é bem assim. Roque é o quase desconhecido Roque Ferreira, também ele um estudioso e defensor da genuína cultura dessa terra de tradição musical tão rica que até se pode dar ao luxo de aturar os axezeiros, com seus trios e bandas de muitos decibéis e quase nenhuma qualidade. Pois bem, este compositor praticamente desconhecido, embora com músicas gravadas por gente como Zeca Pagodinho, municiou a artista com onze inéditas, todas elas no ritmo gostoso, quase uma brincadeira de roda, mas capaz de atrair e prender o ouvinte, incapaz de resistir ao balanço, acompanhando a percussão com os pés, o corpo gingando suave e malemolente nessa coisa estranha e curiosa que é dançar sentado. No gênero, dificilmente se vai encontrar coisa de qualidade parecida. Músicas e letras formam amálgamas de excelente qualidade, com palavras e frases tão típicas que às vezes é preciso explicar. Como saber que o namoro se frustrou porque o moço pensou que a moça era flor de dendê quando na verdade não passava de bambá de dendê? Claro que a música é gostosa do mesmo jeito porque de repente a gente descobre que amor de maré é aquele que nos deixa atarantados e inseguros porque, como a maré, ora sobe, ora desce; com um olhar instaura uma paixão e com outro a solidão; na lua cheia faz a corte e na nova diz que não. Para arrematar uma vênia para uma quase desconhecida Dalva Damiana de Freitas compositora do irônico e sutil "Ciúmes".
Meninos, eu vi! A moça cantora formosa e faceira encheu a aconchegante Sala do Coro do Teatro Castro Alves numa noite de segunda-feira e pediu passagem para o mais autêntico e puro samba-de-roda, samba chula, samba corrido ou que nome o tenha. Meninos, eu vi!

Dr° Alcir Santos - Coluna "Sexta Vazia"

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